A grande invasão
Por Juan Jose Mateo (El Pais)
Os "pratas da casa" europeus estão desaparecendo. É o que apontam as tradições rompidas: o Atlético, por exemplo, não tem nesta temporada nenhum jogador madrilenho pela primeira vez em sua história. É o que dizem as finais: o Beveren, explicam os críticos, baixou para a segunda divisão porque sua onda de contratações de jogadores da Costa do Marfim o levou a jogar uma final da Copa Belga quase sem jogadores do país no time. E dizem os dados: os jogadores de "cantera" - que estão há pelo menos três temporadas no mesmo clube, entre os 15 e os 21 anos - já representam só 24,3% do total de 2.744 que começaram a temporada nas cinco grandes ligas européias, segundo um estudo patrocinado pela Fifa e realizado pelo Centro Internacional de Estudos Esportivos e a Universidade de Franche-Comté.
Sem os jogadores locais, diz a Fifa, morrem as seleções e os símbolos de identidade dos times. Sem eles, contam os dados, cresce o negócio dos representantes e o número de jogadores estrangeiros que jogam na Espanha, Itália, Alemanha, França e Inglaterra: já são 38,9%, 0,5% a mais que na última temporada.
"A situação é preocupante", admite por telefone Jérôme Champagne, delegado do presidente da Fifa. "Eu sou francês. E quero ver times franceses com brasileiros, argelinos, suecos... mas se não há jogadores nesses times que possam jogar na seleção, a equipe da França morrerá em dez anos", continua. "Estamos determinados a implantar a fórmula 6+5 [seis titulares suscetíveis de atuar na seleção do país do time]. Não somos xenófobos. Não é uma divisão por passaportes, mas pela condição de ser selecionáveis. Queremos proteger o futebol do financeiro. A liberdade de movimentos dos trabalhadores na UE, que respeitamos, tem um impacto muito maior no futebol do que em qualquer outro mercado, além de um impacto de incerteza sobre a competição, porque há uma relação estreita entre dinheiro, a possibilidade de contratar estrangeiros, sucessos esportivos e, em conseqüência, prêmios e novamente dinheiro".
Há países invadidos, como a Inglaterra. Lá, 55,5% dos jogadores são estrangeiros. É normal ver o Arsenal, a equipe de Cesc e Almunia, jogar sem um único inglês. E o treinador Steve McLaren treme cada vez que Owen ou Rooney sofrem lesões. Na Premier League (primeira divisão do futebol inglês), como nas grandes ligas, os gols são coisa de estrangeiros. A especialização triunfa no futebol.
“O fenômeno afeta todos os esportes", diz Champagne. "No basquete, onde são só cinco jogadores, é terrível. Me contaram que não há poloneses para jogar em sua seleção! No futebol são 11 jogadores e podemos sobreviver, mas os atacantes tendem a ser estrangeiros. Se não jogam os jogadores locais, o pool de talentos é menor. Se destrói o laço que une um clube com sua base local, a força do futebol".
“Tudo isso me parece surpreendente", diz Michel, ex-jogador do Madrid e agora encarregado de sua equipe de base. "Nossas seleções inferiores continuam ganhando, mas não passam daí. Está impossível para eles. Nossa Liga, enquanto isso, está cheia de jovens estrangeiros. As equipes, além disso, não reconhecem suas falhas: sempre põem para jogar o jogador que foi contratado, sempre vão lhe dar outra oportunidade. Isso só se pode entender pelo negócio", continua, ao saber que o número de jogadores na categoria de base na Europa diminuiu 2,5% em relação à temporada 2005-2006, a mesma porcentagem em que aumentou o de estrangeiros na Espanha.
“Nossas equipes recebem reforços do Brasil, França, Nigéria...", lembra, "de todos, e depois de cinco meses eles jogam em nosso país e os nossos não. Que me expliquem isso! Não é curioso, mas suspeito", acrescenta. "A desculpa é sempre a globalização do futebol. Dizem que não há fronteiras. Pois há fronteiras para os espanhóis!”
O futebol de elite é governado pelos agentes e pelo mercado. A categoria de base também. Todos os grandes clubes têm em suas equipes inferiores jogadores brasileiros, poloneses, nigerianos... "Às vezes parece que o que vem de fora é melhor, talvez por questões econômicas", argumenta Santi Denia, ex-jogador do Atlético e hoje à frente de sua equipe de juniores. "Há menos opções para os daqui. Para um jogador junior é preciso dar mais oportunidades" A presença de estrangeiros, porém, também pode levar um jogador junior ao sucesso. Aí estão os casos de Messi ou Giovanni, do Barça. Sua presença na equipe principal, como a de Bojan, espanhol de pai sérvio, resume a teoria de Michel: "As equipes de base sempre são investimentos positivos para as grandes equipes, porque mandam jogadores para outros lugares e ganham dinheiro". E de passagem garante que o atleta compreenda "a cultura do clube".
“Hoje o modelo do Barça é o reflexo", conta Denia. "Sua filial baixou para a terceira divisão, mas não olham para os resultados, e sim para formar jogadores. E se o objetivo da equipe de base é esse, o Barça está conseguindo, com um programa de trabalho físico, tático e psicológico específico com jogadores de 16 a 17 anos. Assim economizam um dinheirão, o que custaria a transferência de Iniesta, Messi..." O Barça, além disso, é o clube europeu que menos mudou seu plantel nos últimos três anos, segundo a Fifa: 76% de seus jogadores já estavam no time em agosto de 2004. O sucesso de Messi e Giovanni, porém, mostra o que a Fifa chama de "círculo vicioso" da Lei Bosman.
“Os clubes que já eram ricos puderam contratar os melhores estrangeiros, ganhar e ficar mais ricos", insiste Champagne. "A Lei Bosman fez aumentar a diferença entre os cinco primeiros e os cinco últimos.
"O Inter jogou a última jornada da Champions (a Liga dos Campeões da Europa) sem um só italiano em suas fileiras. Já não surpreende. A Itália é o país com menos pratas da casa (14,6%). A França, com mais (33,3%). Dizem os especialistas que o sistema francês, o tecido tramado pela Federação, explica as engrenagens que permitiram o surgimento de Zidane, Henry ou Vieira. Na França, porém, há cada vez mais estrangeiros. Este ano jogam 6,8% a menos de jogadores formados no clube do que na última temporada. Na França, também, as equipes de base estão morrendo.
*BLOG DO MASSI opina: os assuntos apontados nessa reportagem podem representar grandes mudanças no futebol brasileiro. O simples fato de tal idéia ser levantada, já sinaliza com uma possível redução, a médio prazo, de atletas do continente sul-americano se transferindo para a Europa.
A matéria de Mateo foi extraída do jornal El País e traduzida por Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
É obrigação do bom jornalismo expor temas que discutam o futuro do esporte.
Os "pratas da casa" europeus estão desaparecendo. É o que apontam as tradições rompidas: o Atlético, por exemplo, não tem nesta temporada nenhum jogador madrilenho pela primeira vez em sua história. É o que dizem as finais: o Beveren, explicam os críticos, baixou para a segunda divisão porque sua onda de contratações de jogadores da Costa do Marfim o levou a jogar uma final da Copa Belga quase sem jogadores do país no time. E dizem os dados: os jogadores de "cantera" - que estão há pelo menos três temporadas no mesmo clube, entre os 15 e os 21 anos - já representam só 24,3% do total de 2.744 que começaram a temporada nas cinco grandes ligas européias, segundo um estudo patrocinado pela Fifa e realizado pelo Centro Internacional de Estudos Esportivos e a Universidade de Franche-Comté.
Sem os jogadores locais, diz a Fifa, morrem as seleções e os símbolos de identidade dos times. Sem eles, contam os dados, cresce o negócio dos representantes e o número de jogadores estrangeiros que jogam na Espanha, Itália, Alemanha, França e Inglaterra: já são 38,9%, 0,5% a mais que na última temporada.
"A situação é preocupante", admite por telefone Jérôme Champagne, delegado do presidente da Fifa. "Eu sou francês. E quero ver times franceses com brasileiros, argelinos, suecos... mas se não há jogadores nesses times que possam jogar na seleção, a equipe da França morrerá em dez anos", continua. "Estamos determinados a implantar a fórmula 6+5 [seis titulares suscetíveis de atuar na seleção do país do time]. Não somos xenófobos. Não é uma divisão por passaportes, mas pela condição de ser selecionáveis. Queremos proteger o futebol do financeiro. A liberdade de movimentos dos trabalhadores na UE, que respeitamos, tem um impacto muito maior no futebol do que em qualquer outro mercado, além de um impacto de incerteza sobre a competição, porque há uma relação estreita entre dinheiro, a possibilidade de contratar estrangeiros, sucessos esportivos e, em conseqüência, prêmios e novamente dinheiro".
Há países invadidos, como a Inglaterra. Lá, 55,5% dos jogadores são estrangeiros. É normal ver o Arsenal, a equipe de Cesc e Almunia, jogar sem um único inglês. E o treinador Steve McLaren treme cada vez que Owen ou Rooney sofrem lesões. Na Premier League (primeira divisão do futebol inglês), como nas grandes ligas, os gols são coisa de estrangeiros. A especialização triunfa no futebol.
“O fenômeno afeta todos os esportes", diz Champagne. "No basquete, onde são só cinco jogadores, é terrível. Me contaram que não há poloneses para jogar em sua seleção! No futebol são 11 jogadores e podemos sobreviver, mas os atacantes tendem a ser estrangeiros. Se não jogam os jogadores locais, o pool de talentos é menor. Se destrói o laço que une um clube com sua base local, a força do futebol".
“Tudo isso me parece surpreendente", diz Michel, ex-jogador do Madrid e agora encarregado de sua equipe de base. "Nossas seleções inferiores continuam ganhando, mas não passam daí. Está impossível para eles. Nossa Liga, enquanto isso, está cheia de jovens estrangeiros. As equipes, além disso, não reconhecem suas falhas: sempre põem para jogar o jogador que foi contratado, sempre vão lhe dar outra oportunidade. Isso só se pode entender pelo negócio", continua, ao saber que o número de jogadores na categoria de base na Europa diminuiu 2,5% em relação à temporada 2005-2006, a mesma porcentagem em que aumentou o de estrangeiros na Espanha.
“Nossas equipes recebem reforços do Brasil, França, Nigéria...", lembra, "de todos, e depois de cinco meses eles jogam em nosso país e os nossos não. Que me expliquem isso! Não é curioso, mas suspeito", acrescenta. "A desculpa é sempre a globalização do futebol. Dizem que não há fronteiras. Pois há fronteiras para os espanhóis!”
O futebol de elite é governado pelos agentes e pelo mercado. A categoria de base também. Todos os grandes clubes têm em suas equipes inferiores jogadores brasileiros, poloneses, nigerianos... "Às vezes parece que o que vem de fora é melhor, talvez por questões econômicas", argumenta Santi Denia, ex-jogador do Atlético e hoje à frente de sua equipe de juniores. "Há menos opções para os daqui. Para um jogador junior é preciso dar mais oportunidades" A presença de estrangeiros, porém, também pode levar um jogador junior ao sucesso. Aí estão os casos de Messi ou Giovanni, do Barça. Sua presença na equipe principal, como a de Bojan, espanhol de pai sérvio, resume a teoria de Michel: "As equipes de base sempre são investimentos positivos para as grandes equipes, porque mandam jogadores para outros lugares e ganham dinheiro". E de passagem garante que o atleta compreenda "a cultura do clube".
“Hoje o modelo do Barça é o reflexo", conta Denia. "Sua filial baixou para a terceira divisão, mas não olham para os resultados, e sim para formar jogadores. E se o objetivo da equipe de base é esse, o Barça está conseguindo, com um programa de trabalho físico, tático e psicológico específico com jogadores de 16 a 17 anos. Assim economizam um dinheirão, o que custaria a transferência de Iniesta, Messi..." O Barça, além disso, é o clube europeu que menos mudou seu plantel nos últimos três anos, segundo a Fifa: 76% de seus jogadores já estavam no time em agosto de 2004. O sucesso de Messi e Giovanni, porém, mostra o que a Fifa chama de "círculo vicioso" da Lei Bosman.
“Os clubes que já eram ricos puderam contratar os melhores estrangeiros, ganhar e ficar mais ricos", insiste Champagne. "A Lei Bosman fez aumentar a diferença entre os cinco primeiros e os cinco últimos.
"O Inter jogou a última jornada da Champions (a Liga dos Campeões da Europa) sem um só italiano em suas fileiras. Já não surpreende. A Itália é o país com menos pratas da casa (14,6%). A França, com mais (33,3%). Dizem os especialistas que o sistema francês, o tecido tramado pela Federação, explica as engrenagens que permitiram o surgimento de Zidane, Henry ou Vieira. Na França, porém, há cada vez mais estrangeiros. Este ano jogam 6,8% a menos de jogadores formados no clube do que na última temporada. Na França, também, as equipes de base estão morrendo.
*BLOG DO MASSI opina: os assuntos apontados nessa reportagem podem representar grandes mudanças no futebol brasileiro. O simples fato de tal idéia ser levantada, já sinaliza com uma possível redução, a médio prazo, de atletas do continente sul-americano se transferindo para a Europa.
A matéria de Mateo foi extraída do jornal El País e traduzida por Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
É obrigação do bom jornalismo expor temas que discutam o futuro do esporte.
Um comentário:
Excelente escolha este artigo. Também sou favorável a que se coloque um travão na contratação de jogadores estrangeiros, muitos deles de valor duvidoso que tapam o lugar a jovens vindos das camadas jovens.
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